Jesús de Tavarengue (hoje no Paraguai)


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Misión Jesuítica de Jesús de Tavarangue”
(Introdução de Gabriela Vieira Lopes Ferreira; texto técnico de Prof. Dalton A. Raphael)

Esta redução foi criada em 1685, projeto do arquiteto Antonio Forcada de origem espanhola, que impôs o estilo mudéjar (cristão-árabe) refletido especialmente com o uso de arcos de trifólio – ou trilobado (Teoria 2, item 11) e de inspirações mouriscas. Como as demais, a Missão consistia de Igreja, Praça Principal, colégio anexo à Igreja (do qual, apenas um aposento se mantém) e nas casas para órfãos e viúvas conhecidas como casa grande (cotiguazu), Além das vilas residenciais para o gentio. Havia também pomar para os padres.

Com a expulsão dos jesuítas em 1767, as construções de Jesús de Tavarangue nunca foram concluídas. Mesmo inacabada, a Igreja foi uma das maiores da época, com uma estrutura principal de 70m de comprimento e 24m de largura. As portas de acesso, três localizadas na frente, são muito impressionantes.


(Mapa esquemático: Ana Luísa M. Mazzarelli)

Partindo da simpática cidade gaúcha de Santo Ângelo, para se chegar à Missão de “Jesús de Tavarengue“, se atravessa de balsa o Rio Uruguai (de Porto Xavier para San Xavier); uma vez em terras argentinas, toma-se a direção de Posadas; desta cidade se cruza (por ponte) o Rio Paraná para entrar no Paraguai pela cidade de “Encarnación”. É uma linda incursão pelo país Guarani.

Em termos de Estereotomia, a Missão “Jesús de Tavarengue” tem muito a oferecer. Logo na chegada, próximo à Igreja, já se nota as esperas, de onde continuariam um dia, construir algum anexo contínuo, provavelmente o Colégio, entremeando pedras. São os intervalos ocos nas paredes de pedra que se nota nas próximas fotos. Esta é a maneira correta de se fazer a “amarração” ou a junção para que, não só fique estável, mas sobretudo garanta o equilíbrio. O contra-exemplo pode ser notado em “San Ignácio Mini“, hoje na Argentina, Missão na qual, em alguns locais (terceira foto abaixo) as paredes simplesmente se tocam, sem se entremearem para formar o canto (ou o sequenciamento), o que é claro caracteriza este como um sistema construtivo mais rudimentar e impróprio.

Aproveite-se também para avaliar que em Jesus de Tavarengue, o aparelhamento das pedras é perfeito, tanto nas dimensões das pedras, quanto em acabamento do paramento, que de absolutamente plano, é incomparável. Se trata de um muro que não apresenta as irregularidades peculiares ao material.

Os arcos trilobados dos três pórticos de entrada da Igreja, são obra de extrema maestria e são absolutamente perfeitos e similares. Apresentam a imposta em forma de peanha composta por três camadas de pedra. O arco é ladeado por dois contrafortes, que assumem a característica de colunas inseridas no muro.

Para o desavisado que contempla, esses arcos trifólios parecem pertencer a uma parede delgada e frágil (não mais de 40cm de espessura). Todavia, o exame mais detido e apurado, pelo lado interior da edificação, mostrará que esta fragilidade não passa de uma delicadeza criativa, para que o paramento não ficasse tão maciço junto ao pórtico (quinta foto da próxima sequência). O leve arco trilobulado, em verdade disfarça um potente arco rebaixado, cuja espessura envolve uma seção bem maior, de cerca de 1,20m. Portanto, o trifólio é antes um ornamento do que uma sustentação.


As vergas dos vãos, em geral, foram tratadas e trabalhadas estereotômicamente de forma retilínea.
Excetuam-se dois nichos, que simetricamente margeiam ao vão central da Igreja. Estes nichos, tratados de forma magnífica, apresentam pedras talhadas à maneira de muros cilíndricos (teoria 1, item 3) na sua face externa; a outra face, interior, o tratamento é em muro plano. Molduras fitomorfas compõem os fechamentos laterais destes nichos, que são coroados, cada um deles, por uma conchóide integral (não decupada) e por brasões papais; do lado do evangelho, o brasão é alusivo a São Pedro e do lado da Epístola, alusivo a São Paulo, apontando iconograficamente para os santos que os habitariam.

A fachada inteira é atravessada por uma cimalha duplamente composta e por uma especie de gola, indicativa da plataforma de embasamento, provavelmente ambas para efeito plástico, uma vez que cumpririam importante papel na modenatura final da ermida.

Essa modenatura é pautada também por seis contrafortes, só na parte central (sem contar que tais elementos também existiriam nos campanários). A fotomontagem abaixo, além de mostrar esses detalhes, também é indicativa de que sobre os vãos das portas, poderiam haver vãos, quem sabe destinados a janelões, obviamente com o intuito de iluminar o imenso interior ou até uma área de coro.

Nos 1680m2 da Igreja, três naves são divididas por aleias de robustos pilares, que englobam inclusive os púlpitos, que foram inseridos em duas destas colunas, uma de cada lado.

Analisando as 14 colunas internas, pode-se em saudáveis exercícios de imaginação, pensar em duas teorias. A primeira delas reza que a nave central fosse coberta por uma abóbada de berço monumental em arco elíptico (Teoria 2, item 5) ou então, menos provável, abatido (pela forma final do alinhamento das pedras de arremate na Capela Mor) e quem sabe, as naves laterais pudessem ser cobertas por pequenas abóbadas de arestas. Chama a atenção, na próxima didática foto abaixo, o fato de que os arcos da nave apresentam altura similar ao arco elíptico da Capela Mor, o que denota grande apuro e pensamentos, espacial e projetual, avançados.
A segunda teoria é que tais abóbadas ficariam para uma segunda etapa da construção e então, sobre as estípites e sobre as cimalha real interna, o interstício entre os vãos tenha sido completado, nivelando horizontalmente ambos os lados, como se vê nas três fotos maiores da próxima sequência.

Todavia, são exercícios de especulação imaginativa.

Os contrafortes que afloram no interior da igreja, possuem a base menor que o capitel, em formato assumido de estípites, mais uma alusão à herança ibérica.


Os pilares tem a forma geométrica de um icoságono irregular. O quadrado que os circunscreve, apresenta aproximadamente um metro de lado. São pedras talhadas com muito esmero e requinte; como em toda “Jesús”, as pedras são fina e regularmente aparelhadas e encaixadas com rigor geométrico.

As bacias dos púlpitos são outras duas obras de arte. Simetricamente instaladas, voltados para o interior, como sói acontecer nas igrejas, também mantem a forma de peanha, ampliações dos suportes do arco trilobulado já visto. Pelo lado das naves laterais, o acesso se dava através de uma escada de seis degraus, internos ao pilar envolvente e mais outro externo, de espelho muito alto, o que pode sugerir que fosse assim feito, para dificultar o acesso indevido, ou ainda, que haveria um degrau removível à hora do ofício.

No sítio onde deveria estar o arco do cruzeiro, acesso à Capela Mor, entre duas estípites de cada lado, encontram-se as dedicações a São Francisco de Assis, com o ano de 1776 e a São Domingos de Gusmão, com a data de 13 de fevereiro. Essas invocações são ambas margeadas por plásticos capitéis fitomorfos, encabeçamentos tão somente decorativos, uma vez que não cumprem função estereotômica que não outra, do que simplesmente aumentar um pouco a seção de base para cimalha (que por sinal é muito danificada nesta parte) e friso, superiores (próxima foto). Acima da denominação dos santos pode-se notar que delicados anjinhos (face esculpida) coroam pitorescas guirlandas; já abaixo das inscrições, um nicho de cada lado fatalmente receberiam as esculturas de São Francisco e São Domingos, que pela posição no arco do cruzeiro, guardariam o Altar Mor.


(foto acima obtida através do Google Maps em 28/07/2020)

A espaçosa Capela Mor apresenta uma mesa simplória; neste local, o detalhe mais pujante é o perfeito arco elíptico (Teoria 2, item 5), que se aproxima muito de um arco abatido. Este arco seria arremate, provavelmente de uma abóbada em tabuado, uma vez que jamais suportaria a carga de uma abóbada. Nessa mesma parede, três esferas ocas podem indicar algum tipo de andaime que poderia ter sido utilizado, um dia.

A Capela mor dá acesso à Sacristia e aos ambientes destinados à liturgia.

Um destes ambientes, uma ampla sala área estimada em 64m, guarda uma surpresa fantástica aos apaixonados pela Estereotomia: uma (eternamente) nascedoura abóbada barrete de clérigo (Teoria 4, item 3), se sobrepõe à cimalha. Infelizmente, aquela que seria uma linda abóbada quedou-se estacionada, inacabada. A observação das fotos abaixo pode mostrar qual era a função das cimalhas reais. Muito utilizadas até os anos 80, as sancas eram elementos de adorno, muitas vezes utilizadas para ocultar sistemas de iluminação indireta; todavia, as quatro próximas imagens mostram sua a real utilidade: Aumentar a seção do paramento (espessura da parede), aumentando assim a sustentação, para que pudesse receber uma carga maior: madeiramento e telhado ou então uma abóbada, como no caso.

No caso acima, é bastante provável que tenham utilizado um cimbre fixo, pois as pedras da abóbada de barrete de clérigo (Teoria 4, item 3) não tiveram amarração entremeada no sentido da cimalha real ao vértice. A amarração seria só lateral, ou seja, as linhas são independentes, uma das outras, o que poderia fragilizar demais aos quatro triângulos esféricos da abóbada. Possa ser também, que o sistema a ser aplicado fosse misto e nesse caso as pedras ainda passariam a se entremear, linhas acima. Entremear os blocos de pedra nos dois sentidos, aumenta demais a resistência da abóbada ou da cúpula.

Alguns blocos de cerca de 1,30m foram deixados ao tempo para amostra. São blocos maiores, alinhados e refilados que compunham as cimalhas reais, transpassando à diversos blocos de pedra fazendo junta sempre ao meio destes. A última foto alude à base de uma coluna de sustentação do alpendre da galeria alinhada do colégio e das oficinas.

As próximas fotos, mostram as salas do colégio e permitem-nos notar outras esperas-ocas, alinhadas para fixação de uma parede e no piso, um sistema de circulação de água e vapor, destinado a aquecer ambientes (dormitórios dos padres, como mostrado em “Santísima Trinidad”). Situada bem abaixo do Trópico de Capricórnio, Jesús pertence à uma zona de inverno muito rigoroso e assim sendo, nada mais justo que se buscasse ainda que de forma rudimentar, algum conforto ambiental.

A enorme e plana área da Missão recebe e apresenta uma luz especial. Por lá, as temperaturas são extremadas: no verão, calor tórrido; no inverno, frio intenso. Em “Jesús de Tavarengue” as edificações estavam orientadas para receber diagonalmente o sol da manhã, com maior intensidade, daí os alpendres das oficinas fronteiriças às Praças Privativas receberem tratamento tão especial, com calçamento e colunas caprichosamente talhadas e chanfradas.


A última foto acima, mostra um dos ambientes na vizinhança da Capela Mor, o curioso é a espera deixada em duas paredes, destinada a um encaixe de telhado, uma espécie de rufo que inclusive ditaria o direcionamento do telhado.

O acesso ao campanário existente (que fica no lado da epístola) se faz através de uma escada, sustentada por outro arco elíptico (1/4 de elipse). Esta estereotômica escada apoia-se no paramento da Igreja, no próprio campanário e em um pesado bloco composto, enterrado no solo. Ao se chegar ao primeiro piso do campanário, os observadores têm uma imensa surpresa: o extradorso de uma pequena cúpula (teoria 4, Item 4) de fechamento e forro de uma sala no piso inferior, cujo diâmetro aproxima-se de 4,0m.

Executada com a mesma qualidade de pedras utilizada em toda a Missão, a semi esfera é coroada por uma pedra chave cônica que, se pelo extradorso apresenta-se algo tosca, no intradorso se revelará floral e muito elaborada (última foto). Há que se considerar que esta é uma cúpula, construída por índios, sob orientação de jesuítas, fundada em 1685, desenvolvida no século XVIII, no interior da América do Sul, muito distante de Portugal ou de Espanha.


Abaixo, o detalhe da pedra chave da cúpula, vista pelo seu extradorso.

Pelo interior, o ambiente abobadado é uma sala que provavelmente tenha sido o Batistério da Missão, pela solenidade que o ambiente ostenta.
A cúpula repousa sobre quatro arcadas que por sua vez são sustentadas por quatro pilares poligonais, bi-facetados cada um deles (o que modifica a circunferência maior, fazendo uma passagem para um octógono irregular na base da cúpula); o conjunto assume portanto, uma característica particularíssima: a cúpula não repousa sobre rotunda ou trompas, mas sobre diferenciados pendentes. Ela é sustentada por um sistema misto, no qual as quatro arcadas rompem o equador da grande semi-esfera; uma cimalha intermediária (que em verdade, poderá até ser ser mais ornamental do que de sustentação), cria uma ilusão de que a cúpula seja menor do que ela realmente é.

À maneira de pendentes, quatro conjuntos escalonados de dois degraus terminam de encaminhar a carga do sistema aos pilares (ilustrações de corte e planta-baixa, sem escala, abaixo) .

Sob os arcos plenos, três vãos em arco rebaixado e no quarto, uma parede sem vãos.

Conhecemos outras cúpulas na América Colonial Portuguesa, como por exemplo na Igreja do Castelo da Torre de Garcia D’Ávila em Tatauapara na Bahia. Mas este ambiente, ostentando tamanha grandiosidade, nos leva a pensar, como foi construído o cimbre? Como foram talhadas as pedras constituintes da cúpula? Como fabricaram os instrumentos de talho, como os forjavam? Como captaram a água necessária para o consumo na lavra? Que impacto a monumental arquitetura causou no gentio?
A cúpula de “Jesus de Tavarengue” é por si só mais uma joia a ser visitada, admirada e valorizada, não fosse todo o sítio, um Patrimônio da Humanidade.

Nas duas fotos que se seguem, a pedra chave e sua posição arrematadora na hemisférica superfície da cúpula.

O campanário de “Jesús” permeia ao visitante interessado, a subida à cimalha real, de onde se tem uma visão muito privilegiada, não só do interior da Igreja, como também do “modus faciendi” empregado e do planíssimo entorno.

Jesús de Tavarengue realmente proporciona muitos ensinamentos ao historiadores da arquitetura; não é local para se admirar tão somente por fotos, mas para ser palmilhado, passo a passo, esquadrinhado com minuciosidade, analisado.

Nas fotos abaixo, uma referência de escala humana, sobre o paramento de cerca de 2,50m de largura.